sexta-feira, 19 de março de 2010

Dia do Pai

"Pai e Filhos" - Egipto, 4000 AC



Linha isoeléctrica




Chegou a hora
Mas ainda olho para ti
Uma última vez.


O meu olhar demora
E descubro que gosto de te olhar.
Estás sereno
E tão calmo
Que, tolice,
Diria até que sorris
Com marotice.


Pego-te na mão.
Cabe inteira
Na palma da minha mão.
Pareceu-me que murmuraste algo
Mas não.
A tua face permaneceu imóvel
Como a de um fidalgo
Olhando-me com altivez


Só eu e tu.


Os outros saíram
Mandei-os sair, desta vez.
Para que o silêncio
Cru
Do nosso olhar
Fosse um momento singular:

Só eu e tu.


Chegou a hora.
Não sei como te chamas
De onde vens
Para onde irás.
Se para os píncaros dos céus
Se para as entranhas do ser
Não creio que haja um deus
Que te possa valer.
Não sei quem és
Nem quem serás
Mas vi que o teu coração já não bate
E que o teu corpo sofreu um cheque-mate.


Chegou pois a hora de partires
De eu te libertar
De tu me libertares.
Goza por mim os cometas e as estrelas
Abraça por mim as coisas que são belas
Ri-te por mim das fábulas milenares
Mas igualmente das histórias mais singelas.


Só eu e tu.


Chegou a hora
E a hora do adeus tem de ser breve.
Vou assinar a ordem
Para, assim leve
Te libertares
E viajares
Pelo espaço infinito.
Quanto ao resto
Não te preocupes
Será meu, o conflito.
Eles vão chorar
E rezar
E sentir raiva.
E vão sentir a brutalidade
Da indignação.
E vão chorar
E chorar
E chorar!
Até perceberem
Com tranquilidade
Que estás a viver, com paixão,
No coração
Da Estrela Polar.


Não sei de onde vens
Nem para onde vais
Lá fora estão os teus pais
À espera de notícias
Virão em breve dar-te as últimas carícias.


Vai
Vai
Chegou o momento de partires
Vou libertar-te do espartilho
E dos derradeiros nós
Eu e tu.


Sós.


Como se eu fosse o pai
E tu meu filho.


MC

4 comentários:

Virginia disse...

Até chorei....tão triste, mano!

Os médicos devem ter por vezes estes momentos diante dos seus pacientes que não sobrevivem....mas espero que sejam poucos e que as alegrias dos que por aí se lembram de ti sejam muitos mais....milhares...

Bjo

Anónimo disse...

Acho que no Dia do Pai e para os Pais é realmente um pouco triste de mais.

Como contra-ponto, deixo aqui um poema de Florbela Espanca:

Ter um Pai!

Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!

Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra !

Ter um Pai ! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;

Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo ; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado !

Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher !

Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal !

Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!

Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!

miguel disse...

poema triste ( em damasia ) e bonito...

É recente? Refere-se a algum momemto ou experiência em concreto?

Mário disse...

Têm razão, no que toca à tristeza do poema... ou melancolia, vivida num momento (real, Miguel) da mais extrema solidão, em que o Mundo me pareceu desabitado e árido.

Infelizmente, foram várias as situações semelhantes que vivi - e trabalhar durante alguns meses numa Unidade de Leucemias não ajudou muito a evitar este tipo de coisas. Mas aprendi muito, como médico, pessoa e também como pai. Tive um caso de pais com três filhos, dois dos quais tiveram leucemias, não se conseguindo estabelecer na altura qualquer associação, mas uma mera coincidência (provavelmente haveria algo de genético, em termos de sensibilidade a factores de risco). Ambas as crianças morreram, e só sobrou o gémeo do mais novo. Passados quase trinta anos, com três filhos pequenos, penso no que seria, e não consigo imaginar: a minha emaptia não chega para tanto.

Resolvi colocar aqui este poema porque há pais que não têm os filhos para lhes dar um abraço ou um telefonema neste dia. Porque morreram ou porque estão longe e inacessíveis (tantas vezes fruto de processos judiciais iníquos), ou... por outras quaisquer razões. A vida é feita de matizes, e este Blogue "gosta" de explorar a face oculta da Lua (ui!, corrijo: a metade não ísível da Lua, porque faces ocultas são territórios proibidos - ficam para o outro Blogue e para os comentários da Virgínia!!!!!).